domingo, 7 de fevereiro de 2021

Kargyraa da Mongólia. Um estudo em Câmera de Highspeed, Espectografia e Filtragem-Inversa

"Foi observado que as pregas vocais vibravam na mesma frequência nos dois modos. Porém, no throat-singing a prega vestibular vibrava com um ciclo completo na metade da frequência das pregas vocais, cobrindo-as a cada segundo ciclo de fechamento completo, na proporção de 2 pra 1." (Tradução livre)


Aqui é o Ian Gonçalves e eu trago hoje um artigo interessantíssimo.

O "throat-singing" da Mongólia remete a um gênero de música folk nativa tradicional da região. Em 2001 foi publicado um artigo interessantíssimo estudando essa técnica e sua forma de produção vocal. O mais interessante é que o estudo teve participações de cantores profissionais do gênero e que, além disso, eram nativos da Mongólia. 

O artigo foi intitulado de Voice Source Characteristics in Mongolian “Throat Singing” Studied with High-Speed Imaging Technique, Acoustic Spectra, and Inverse Filtering e foi publicado no Journal of Voice por Per-Åke Lindestad, Maria Södersten, Björn Merker, e Svante Granqvist, através das instituições Karolinska Institute, Department of Logopedics and Phoniatrics, Huddinge University Hospital, Huddinge, Sweden; The Institute for Biomusicology, Mid Sweden University, Östersund, Sweden; Department of Speech, Music, Hearing, Royal Institute of Technology, Stockholm, Sweden.

Esse estilo vocal é conhecido por soar extremamente grave e é popularmente chamado de Kargyraa. Em 1967, Smith et al. escreveu que este som seria produzido por duas fontes osciladoras (glote + supraglote) ou por um padrão de vibração assimétrico das pregas vocais ("creaky").

Em 1998, Fuks et al. reportaram em pesquisa que um som que estava sendo produzido por uma  oscilação de pregas vestibulares era idêntico ao Kargyraa. Em imagens de ultra-velocidade, pode ser visto que as pregas vestibulares vibravam na exata metade da frequência das pregas vocais, trazendo um sub-harmônico uma oitava abaixo, dando a sensação de canto super grave.

O sujeito estudado foi instruído e treinado por dois professores e cantores profissionais do gênero, um do Tibete e outro da Mongólia.

Aqui vai um exemplo do som deste gênero:



Para a análise ele sustentou uma vogal /o:/, onde ele alternou entre a sua voz normal (chamada por eles de "modal voice") e o "throat-singing".

Uma câmera de high-speed foi usada para analisar o movimento exato da produção dentro da laringe. 

É importante salientar: O melhor tipo de vídeo para analisar a laringe nesse tipo de produção vocal é um vídeo filmado por câmera de high-speed, pois ela consegue filmar em ultra velocidade e torna possível enxergar exatamente o que está acontecendo.

Se o vídeo de laringoscopia usado não for feito por uma câmera de high-speed, dificilmente será possível tirar conclusões precisas do que está acontecendo, pois o efeito é o mesmo que olhar para a hélice de um helicóptero em movimento. A imagem se distorce inteira por conta da alta velocidade. É tão rápido que não dá pra enxergar o que está acontecendo de verdade e é por isso que fazer pesquisas com essas imagens é tão inacessível, pois não é um aparelho fácil de se ter.

Uma speed-cam como a que foi usada nesse estudo pode gravar um vídeo de 100 mil a até 1 milhão de frames por segundo, em 4k de qualidade. Por conta disso, essas câmeras são muito pouco acessíveis no brasil, já que o preço delas chega perto dos 100 mil euros. hehe

Especificações técnicas da câmera de High-speed


Aqui está um exemplo do que essas câmeras são capazes de fazer:


Uma tecnologia como essa nos permite dizer com precisão o que está acontecendo de verdade na prega vocal.

E os resultados do artigo?

Bom, na análise espectral foi visto que um novo padrão foi formado, com novos sub-harmônicos. É possível ver que o número de risquinhos no espectrograma aumentou drasticamente. Isso se deve ao fato de que, ao adicionar uma segunda fonte (prega vestibular), novos harmônicos foram produzidos (lembre que os harmônicos sempre são produzidos por uma ou mais fontes).


Já na Filtragem Inversa, uma técnica de análise para verificar o padrão da fonte sonora sem a influência dos ressonadores, foi visto um novo padrão no fluxo de ar, onde o segundo pulso de ar sempre saía com uma amplitude menor que o primeiro (como mostrado no gráfico abaixo). Nele você vê 2 ondas de fluxo: A primeira parecem morrinhos regulares, a imagem abaixo mostra um padrão duplo, com um morrinho regular e um segundo meio "demolido". Esse segundo demolido que é o afetado pela ação das pregas vestibulares.



Assim como no Creaky, o padrão da voz modal é alterado para um "padrão duplo", pois agora a uma produção simultânea de duas coisas ao mesmo tempo (a oitava de cima e a oitava de baixo, no caso do Kargyraa).

Isso aconteceu porque foi visto que, a cada dois ciclos completos nas pregas vocais, as pregas vestibulares se fechavam uma vez. Isso ocorria na proporção de 2 pra 1. Duas "batidas" de prega vocal pra 1 da prega vestibular.

Já na imagem de high-speed foi vista a parte mais interessante. No Kargyraa foi visto que as pregas vestibulares faziam um fechamento completo a cada dois ciclos da prega vocal. E agora vamos finalmente para a melhor imagem hehe


É possível ver como a prega vestibular fecha completamente no frame 1 e no 28. Seria impossível dizer que as pregas vestibulares, ao participarem num padrão tão específico, não estariam causando efeitos no som produzido.

Mas tem a imagem por um outro ângulo: O ângulo da videoquimografia. Uma forma de se fazer uma análise objetiva da imagem da laringe. Sem essas análises, apresentaríamos interpretações subjetivas do que está acontecendo. Ela também é feita com uma câmera de high-speed.
Esse pode parecer mais confuso de entender, mas ele ilustra exatamente esse padrão de 2 pra 1 citado anteriormente, em quase 40 ciclos glóticos.


Essa imagem mostra diversos ciclos completos, onde é possível ver o fechamento completo das pregas vestibulares a cada 2 fechamentos completos das pregas vocais.

"No presente estudo foi confirmado novamente que as pregas vestibulares possuem uma participação importante nesse tipo de produção vocal.
O presente estudo sugere que este tipo de som é produzido por um padrão muito complexo, com duas fontes de vibração ocorrendo ao mesmo tempo. As pregas vestibulares agem para possibilitar vozes extremamente graves devido a este padrão de vibração em 50% da frequência. O Kargyraa grave é produzido com a combinação de pregas vocais e pregas vestibulares."

Essas são as conclusões do artigo publicado em 2001 por Lindestad no Journal of Voice.
Estudos como estes são muito importantes para entendermos como são feitos os sons distorcidos (os tais "drives vocais"). O curso PCV, do Mauro Fiuza, aborda esse tema com bastante aprofundamento.


Muito obrigado, ficarei por aqui e até a próxima!
@IanGGoncalves e ian.voz@icloud.com

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